quinta-feira, 13 de outubro de 2011

REFLEXÕES SOBRE A ALIMENTAÇÃO ADEQUADA NO CONTEXTO DA SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL SUSTENTÁVEL E A SITUAÇÃO DE EXCLUSÃO EM QUE VIVEM OS CIDADÃOS COM NECESSIDADES ALIMENTARES ESPECIAIS


Margarida Maria Santana da Silva[1]
Ângela de Abreu Diniz[2]

Resumo: O Brasil conta com a Lei de Segurança Alimentar e Nutricional - LOSAN/2006 (Lei Nº 11.346) que, se devidamente aplicada, deveria garantir a segurança alimentar e nutricional da população brasileira. Nela, o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), tem a função de propor diretrizes e efetuar o controle social da Política Nacional nesta área. No entanto, existe uma grande parcela da população com necessidades alimentares especiais, que vivem em constante estado de insegurança alimentar pela falta de políticas específicas e de inclusão nas existentes, de caráter geral, como no Programa de Alimentação Escolar e no da Alimentação do Trabalhador. Os diferentes espaços sociais onde o alimento é um aglutinador social, a discriminação é uma constante para estes cidadãos. Entretanto, a segurança alimentar e nutricional para os cidadãos com necessidades alimentares especiais é possível, viável e depende de decisão política e do controle social!

O nosso objetivo ao discorrer sobre este assunto é apresentar algumas situações vivenciadas pelos portadores de necessidades alimentares especiais, onde se verifica a não aplicabilidade da Lei de Segurança Alimentar e Nutricional - LOSAN/2006 (Lei Nº 11.346). Como instrumento legal deveria proteger estes cidadãos da constante situação de insegurança alimentar que desencadeia uma verdadeira exclusão social.
Ela cria também uma institucionalidade permanente para o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), com a importante função de propor diretrizes e efetuar o controle social da Política Nacional nesta área. Neste momento que antecede uma Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, onde se reflete sobre a realidade nos municípios, regiões e estados, com participação dos setores sociais, para estabelecer prioridades nacionais, devemos nos perguntar: quem são os cidadãos que permanecem na condição de insegurança alimentar? Como os seus delegados podem representá-los, tornando-se sua voz nas conferências? Quais são as ações necessárias para reverter a situação de insegurança alimentar?
Assim, vamos nos ater a três artigos desta lei que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (– SISAN), com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. É importante ressaltar, que esta lei é uma conquista social do povo brasileiro, onde todos os artigos e incisos são essenciais e se complementam.
O Artigo 2o garante que a alimentação adequada é um direito humano e, como tal, está consagrada no Constituição Federal e define o poder público como organismo social que tem o dever de adotar políticas e ações para garanti-la, com transparência, para possibilitar o controle social.
O Artigo 3o afirma que a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) consiste no direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que seja ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentável.
O Art. 8o da LOSAN define que a SAN deva ter universalidade e equidade. Portanto, não é aplicável apenas para os cidadãos que podem consumir os alimentos presentes nas refeições sem nenhuma restrição. Para estes, o preparo do alimento, visa apenas atender ao paladar, à condição de ser saudável e ao hábito regional. A universalidade é a capacidade de atender às necessidades de todos e a equidade é a garantia ao acesso ao alimento saudável de forma igual, sem discriminação e, ainda, se deve preservar a autonomia e respeito à dignidade das pessoas.
Então, temos dois grupos de pessoas: os cidadãos que podem consumir todos os alimentos, desde que em boas condições higiênico-sanitárias, sem que por isso fiquem doentes, constituem um grupo que apenas por ser maioria são chamados de “normais”. O outro grupo é formado pelas pessoas que possuem uma condição especial do organismo, que as tornam diferentes da grande maioria da população, ou, que para o controle de uma doença permanente ou temporária, possuem algumas restrições alimentares.
Essa condição especial do organismo pode ser uma situação que a classe médica já estudou e identificou a falta de alguma substância no organismo que prejudica o aproveitamento de um alimento tal como a fenilcetonúria (não pode comer carnes, leites, ovos e seus derivados, além de ter que reduzir o consumo de alguns vegetais), a deficiência de lactose (não pode consumir leite e, dependendo da gravidade, os derivados também são excluídos). Como pode ser também o caso da doença celíaca onde os médicos identificam danos no organismo, sabem que o trigo, o centeio, a cevada - malte e a aveia, por conterem o glúten provocam a doença, mas não sabem o porquê este organismo reage de maneira diferente ao glúten, dos ditos “normais”.
As condições que exigem necessidades alimentares especiais são inúmeras. Temos os chamados erros inatos do metabolismo. Falta uma determinada substância no organismo que prejudica o aproveitamento de alguns constituintes dos alimentos, que devem ser excluídos, podendo ser o caso de excluir carnes, leites, ovos e seus derivados e talvez reduzir o consumo de algumas farinhas e ou açúcares, dependendo do caso. As alergias alimentares podem excluir um único alimento ou ser múltipla, e até mesmo em mínima quantidade pode gerar sintomas como coceira, manchas pelo corpo, vômito, diarreia ou desenvolver um inchaço na garganta, que exige rápido atendimento em serviço médico para que a pessoa não venha a falecer devido à dificuldade de respirar.
Condições que exigem o controle rígido no consumo de óleos e exclusão das gorduras de origem animal, o controle do sal, a exclusão de açúcares e controle de ingestão de alimentos em geral, em especial de massas e tubérculos; controle no consumo de alimentos industrializados, embutidos e alguns condimentos, exclusão de bebidas alcoólicas; controle no consumo de carnes, leite, ovos e derivados, além de alguns vegetais etc. Sempre aliados ao controle na qualidade e quantidade de alimentos consumidos, buscando uma alimentação saudável. Estes cuidados são necessários nas doenças crônicas que definem mudanças no estilo de vida incluindo hábito alimentar saudável aliado ao controle alimentar específico exigido pelas doenças, como por exemplo, diabetes, doença renal, pressão alta, gota, colesterol ou triglicerídeos elevados na corrente sanguínea, doenças do fígado, gastrite, úlceras, dentre outras.
Nestes dois grupos de pessoas, quando a dieta não é feita corretamente - preferencialmente com acompanhamento médico e de nutricionista para melhor orientá-los - estas doenças podem expressar com diferentes sintomas. Dentre eles a indisposição, cansaço, irritabilidade, dermatites (inflamações na pele, podendo apresentar bolhas), diarreia, vômito, cólicas, convulsões, problemas neurológicos (epilepsia rebelde ao tratamento), problemas mentais, desidratação, problemas no fígado, dificuldade de respirar durante o sono, atraso no crescimento e desenvolvimento, distúrbios de comportamento, alterações na vista, alterações renais, câncer, infertilidade, abortos recorrentes, alterações auditivas, problemas reumáticos, osteoporose, dentre outros.
Como se pode constatar, a necessidade alimentar especial é coisa séria e os casos não estão longe. Pode ser um vizinho, um colega de escola, um colega de trabalho, um grande amigo, um ou mais familiar muito querido(s). Apesar disto, não tem recebido a devida atenção no campo da SAN e das políticas públicas. Algumas dessas doenças já contam com testes para diagnóstico precoce, isto é, são descobertas logo no início, para que possam ser devidamente tratadas.
Outras, como a doença celíaca, ainda não contam com um programa específico para diagnóstico precoce e acompanhamento. Isso deveria ser iniciado o mais rápido possível, em especial com os escolares. Estudos têm apontado que a ocorrência desta doença no Brasil é grande e quando não controlada com a dieta adequada, isenta de glúten, facilita o aparecimento de outras doenças associadas, debilitando cada vez mais a pessoa, além de sua falta de controle estar associado às neoplasias malignas (câncer).
Pode-se dizer que isto é obrigação da saúde pública, mas a SAN é uma questão intersetorial, onde todos os ministérios devem dialogar para o bem do cidadão em situação de insegurança alimentar. Enquanto o diagnóstico não for feito, a alimentação estará inadequada e contribuindo para o adoecimento e morte do celíaco. Até no simples ato de comungar, o celíaco católico está em situação de insegurança alimentar porque a hóstia é feita de trigo e, portanto, contém glúten. Na doença celíaca a questão não é a quantidade de glúten consumida. A exclusão deve ser total.
Devido ao reduzido espaço, citaremos situações de insegurança alimentar vivenciada pelo cidadão celíaco, comum aos portadores de necessidades alimentares especiais em nosso país: a alimentação especial é preparada com ingredientes que não possuem um incentivo fiscal para redução de custo, ficando sempre mais cara que a alimentação “normal”, dificultando ainda mais a vida das pessoas de baixa renda, pois, muitos vivem com a bolsa família.
 O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS/BRASIL, 2011) divulgam que este programa atende mais de 12 milhões de famílias em todo território nacional. Considerando dois adultos por família, poderemos ter 24 milhões de adultos sendo atendidos. Um estudo da Universidade de Brasília-UNB (PRATESI & GANDOLFI, 2005) encontrou 0,14% de celíacos entre doadores de sangue, ressaltando que doadores de sangue são adultos muito saudáveis. Uma condição não tão comum entre os celíacos e também, entre os que não possuem condições financeiras para manter a alimentação e estilo de vida saudáveis.
Este valor subestima o número de celíacos porque os doadores de sangue eram predominantemente do sexo masculino e a celíaca ocorre mais em mulheres. Empregando esta proporção para estimar número de celíacos entre os adultos do Programa Bolsa Família teríamos 1.680.000 celíacos.
Tendo a estimativa apenas de uma criança por família assistida e empregando outra estimativa da UNB (PRATESI & GANDOLFI, 2005), de ocorrência de 0,54% de celíacos entre crianças que buscaram atendimento no hospital universitário, por outra especialidade que não a gastroenterologia (porque estes teriam maior chance de serem celíacos devidos aos sintomas principais da doença), teríamos entre as crianças deste programa um número de pelo menos 6.480.000 crianças celíacas.
Voltando à questão do custo da alimentação, a farinha de trigo está presente nos pães, nos bolos, biscoitos, macarrões, e o seu preço por quilo é em torno de R$1,74/Kg. Para os celíacos, a sua substituição é feita pela mistura de farinhas empregando o creme de arroz (R$8,05/Kg), polvilho (R$3,80/Kg), fécula de batata (R$21,65/Kg), amido de milho (R$6,64/Kg), sendo ainda necessário adição de outros produtos especiais com preço elevado.
 Estas estimativas, aliadas à análise de substituição da farinha de trigo nas preparações já demonstram a elevação de custo dos alimentos especiais, justificando uma bolsa especial (transferência de renda) para algumas situações alimentares especiais e o incentivo fiscal para produção e comercialização destes produtos alimentares com controle do órgão competente, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Existe uma lei para que os fabricantes coloquem o termo “Contém glúten” ou “Não contém glúten” nos produtos alimentares. Mas, na realidade, muitos produtos estão com a inscrição “Não contém glúten” e infelizmente estão contaminados por glúten (SILVA, 2010), proporcionando um estado permanente de insegurança alimentar para os celíacos.
Um grande problema no país é que os bares, lanchonetes, restaurantes, serviços de eventos, locais de parada de ônibus intermunicipal e interestadual, voos de pequena duração estão preparados para atender apenas aqueles que possuem uma alimentação “normal”, mas são muitos os que necessitam de alimentos modificados, com redução ou exclusão de ingredientes, ficando estas pessoas impossibilitas de se alimentarem adequadamente, e, até mesmo, de efetuarem longas viagens em transportes coletivos.
Estes estabelecimentos não conseguem nem informar a composição das preparações servidas. Isto devido à inexistência de uma legislação específica que exija capacitação dos funcionários para planejar, produzir e servir estes alimentos, além de mudanças nas normas técnicas de preparo (RESOLUÇÃO ANVISA-RDC N° 216 - Regulamento Técnico de Boas Práticas para Serviços de Alimentação) para impedir a contaminação incidental nas cozinhas (exemplo: quando a  farinha de trigo utilizada no preparo de massas permanece no ar e cai sobre outro alimento que não deveria ter glúten, como uma salada de vegetais).
O Programa de Alimentação Escolar é o resultado de uma conquista do povo brasileiro que fez com que ele tenha um caráter contínuo, sendo em muitos casos a principal alimentação diária do estudante. A alimentação escolar deveria ser adequada, o que conceitualmente implica em atender às necessidades alimentares de cada criança. Na prática isto não acontece com os escolares que convivem com restrições alimentares.
O que temos é o registro de discriminação destes estudantes num ambiente que deveria ser educativo e inclusivo, formando cidadãos que respeitem as diversidades de todas as naturezas. Vale ressaltar que alguns raros municípios brasileiros já possuem condições de atender às necessidades alimentares especiais na alimentação escolar. Situação similar a esta é verificada na alimentação do trabalhador.
 É necessário que os Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA(s)) criem comissões especiais de acompanhamento para os cidadãos com necessidades alimentares especiais. É preciso identificar as associações de pais e amigos destas pessoas, que gritam sozinhos por socorro e respeito. Para que eles possam ter a autonomia e dignidade asseguradas no Artigo 8º da LOSAN, tornando-se a sua voz perante as autoridades para o estabelecimento de políticas públicas que os retirem do estado permanente de insegurança alimentar.

REFERÊNCIAS:
MDS/BRASIL. Bolsa Família. Disponível em http://www.mds.gov.br/bolsafamilia, acesso em 08/04/2001
Pratesi, R.; Lenora Gandolfi, L. Doença celíaca: a afecção com múltiplas faces. Jornal de Pediatria, v. 81, n.5, p. 357-8, 2005.
SILVA, R.P. de. Detecção e quantificação de glúten em alimentos industrializados por técnica de ELISA. 2010. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo. 73p.

LEITURAS RECOMENDADAS:
Guias e publicações do Ministério da Saúde sobre a alimentação saudável disponível em: http://nutricao.saude.gov.br/publicacoes.php
Orientações sobre a doença celíaca e para os celíacos disponíveis em: http://www.acelbramg.com.br/


ü  Este artigo faz parte do caderno de textos dos eventos preparatórios para a 5ª Conferência Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável.






[1] Diretora Social da Associação de Celíacos do Brasil- seção Minas Gerais (ACELBRA-MG), Nutricionista/UFV, MS em Extensão Rural/UFV, DS Alimentos e Nutrição/UNICAMP, Professora Aposentada do Departamento de Nutrição e Saúde da Universidade Federal de Viçosa (DNS/UFV) e Celíaca.
[2] Presidente da ACELBRA-MG, acelbramg@hotmail.com, tel (31) 3421 9768

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